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sábado, março 27, 2004

Santa Maria: - Não me chamem amarela!!!!!
Essa coisa de me chamarem de “ilha amarela” tem-me dado a volta às tripas. Não é obra de um Mariense, de certeza. Já vem de há muito tempo, mas agora basta! Não aguento mais: não tenho cara de bufa nem de chinoca… e “japoneses” são aqui os vizinhos mais a norte.
Tudo começou quando me apareceu aqui um escritor que queria ser pintor:
1924. 10 de Junho. Passou aqui o dia, subiu-me o Pico Alto e depois teve de apanhar o navio para conhecer as outras ilhas. E lá foi ele a todo o vapor… Poucas horas esteve comigo mas, mesmo assim, nunca me chamou de amarela. Muito pelo contrário – de mim escreveu as palavras mais belas. Cá prá’gente, eu até gosto de alguns tons de amarelo, mas, às vezes, pintam-me com cada um!
Bem! Mas depois ninguém ligou a esse livro que o meu amigo Raul Brandão escreveu sob o título de “As Ilhas Desconhecidas” e que editou em 1926. Só no Estado Novo, com as primeiras políticas de turismo nos Açores é que esse livro veio à baila. Alguns senhores terão gostado da cor que o Raul deu à sua ilha (tipo: azul, verde, lilás) e, então, acharam que todas as ilhas tinham que ter uma cor. Muito lindo, mas… Amarelo!! Meus senhores: Onde é que foram descobrir isso no livro do Raul Brandão? Ah! Não foi só no livro… foi com os seus próprios olhos!?
Ah! Suas cabeças de pedra mais dura que o meu basalto e mais podres que os meus fósseis !!
DOIRADA! Meus senhores… DOIRADA! D O I R A D A !!!

[o excerto de Brandão, Raul – “As Ilhas Desconhecidas - Notas e paisagens”, Lisboa, 1926 que descreve Santa Maria:

De Lisboa ao Corvo (a bordo do "S. Miguel")
(...)
10 de Junho
(...)
“... Uma manhã transparente que hesita e flutua como um ser delicado, envolta em neblinas. Céu dum azul pálido, forrado no horizonte de nuvenzinhas claras. Mar desmaiado, que não foi feito para se ver mas para respirar, esparso, quieto e fundido. Ao fundo uma mancha indecisa, envolta em névoa, que logo se resolve em poeira esbranquiçada... Há nas coisas uma hesitação, uma mescla, um abrir, como no princípio do mundo quando a água, a luz e a terra não estavam ainda separadas pela mão de Deus. A tinta é muito pouca — quase nada de cor e de sonho. Santa Maria desvenda-se entre as névoas: um monte alongado com uma parte mais baixa e a Vila do Porto saliente, tudo azul emergindo do azul. A medida que o S. Miguel se aproxima, reparo que a ilha é doirada, com sombras a escorrer pelos montes abaixo. Alguns riscos mais carregados, algumas manchas roxas que pouco a pouco se acentuam. Fico perplexo e só quando chegamos quase à fala da povoação, Vila do Porto, é que compreendo: a ilha é um torresmo de pedra negra, de areia negra, como se tivesse passado pelo fogo do Inferno, mas o torresmo está coberto de giesta rasteira e doirada, de giesta em flor, que cheira a uma légua de distância.
Subo por um caminho entre figueiras-do-diabo e solteiras, como se chamam aqui as sardinheiras, que crescem por todos os lados. Colinas, campos de pastagem, e ao longe um pico mais alto donde se descobre toda a ilha. Povoação de duas ou três ruas e casinhas, com a igreja, a ossada dum convento e o solar humilde de Gonçalo Velho. É isolado e triste — mas pedras, campos e furnas estão cheios de asas e de gritos: os escarnentos, negros como melros, passam no ar com o biscato no bico, e a babosa enche este negrume cinzelado de ouro e de perfume. Há momentos em que se encobre o Sol e o torresmo sai mais negro do mar: só fica o cheiro que impregna a terra e o céu.
É aqui que os barcos de três velas vêm buscar o barro em bolas, para S. Miguel fabricar grandes talhas, canecas porosas, vasilhas de todas as formas e feitios. Santa Maria não só fornece os oleiros dos Açores mas fabrica também cântaros, púcaros, caboucos, numa ruazinha escondida da vila. Processos primitivos: o homem numa oficina escura prepara e amassa o barro, a que outros vão lentamente dando feitio no engenho. Trabalha a mão e o pé: o pé na grande roda que faz girar o prato com o barro ainda informe, e a mão dando-lhe a forma.
Que importa que isto seja um ermo onde até às vezes a água falta, sendo preciso para matar a sede trazê-la em navios de S. Miguel? Aqui se vive e aqui se morre. E devo dizer que desta ilha silvestre duas coisas ficarão para sempre na minha memória: o púcaro de barro poroso que torna a água fresquíssima, e o cheiro a giesta que a embalsama. Fiquei-a conhecendo para o resto da minha vida pela ilha que cheira bem... “
(...)

Pode consultar o livro completo aqui]

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